Não quero ser bonita, quero ser interessante
quando eu decidi que preferia ser interessante do que seguir um padrão, também fui capaz de compreender a minha literatura e quem eu quero ser como escritora.
Eu estava na terapia falando sobre como me sentia insegura, como desconhecia o significado de amor próprio e como aquilo tudo me fez aceitar relações oportunistas que me destruíram porque eu achava que, por ser feia, eu não merecia ser amada. Até que a minha terapeuta me fez uma pergunta inesperada: o que tem de feio no seu rosto?
Fiquei atordoada porque não era uma pergunta retórica. Ela realmente queria que eu apresentasse uma resposta. Porém, o que parecia tão óbvio para mim se transformou em uma contradição. Avaliando os traços do meu rosto, olhos, boca, sobrancelha, testa, queixo, formato, tudo, não encontrei nada que eu gostaria de mudar. Até meu nariz, que uma vez foi chamado de nariz de coxinha, eu aprendi a amar ao perceber que ele era perfeito para mim; se eu o afinasse, além de ficar muito artificial, desarranjaria toda a harmonia do meu rosto. Sim, eu concluí que havia harmonia no meu rosto.
Percebendo isso, me senti magoada. Não havia nada que eu quisesse mudar na minha cara, mas eu não enxergava meu rosto como algo bonito, algo agradável. Olheiras ou um leve bigode chinês eram coisas que eu poderia ajustar, que nunca fizeram eu me sentir insegura porque eles só apareceram depois. Entendi que o desprezo com a minha imagem vinha do passado, de palavras negativas do meu pai, de colegas de escola, de ex-namorados. Não havia nada de feio em mim, mas eles me fizeram acreditar que havia.
Passei a vida inteira pensando na minha “melhor versão”: a versão bonita. Cabelos lisos, olhos claros e até outro tom de pele já foram meu desejo. Depois, um cabelo cacheado perfeito, um corpo musculoso, uma maquiagem bem feita e roupas justas. Mas a verdade é que tudo isso me cansava: eu odiava passar horas usando produtos para o cabelo ficar perfeito, odiava seguir todos os passos para fazer minha maquiagem e nunca cogitei tomar anabolizantes para acelerar o processo do corpo. Também tenho pavor de cirurgias. Então, por que eu estava fazendo todo aquele ritual?
Bom, eu consegui descobrir coisas que eu gosto: delineador e rímel, batom matte escuro, cabelo liso e prático com um cronograma capilar simples, ir para a academia para descansar a mente e me sentir mais forte, roupas alinhadas, mas confortáveis, predominantemente lisas. Mas isso só foi possível quando eu percebi que eu não queria mais ser bonita. Não “bonita” como somos ensinadas a ser: consumindo quatrocentos produtos diferentes para alcançar algum padrão que nem combina com a gente.
Eu não queria mais ser bonita. Queria ser interessante.
Eu queria que minha personalidade aflorasse livremente, queria expressar o meu eu natural. Queria parar de ter medo de compartilhar coisas que eu sempre quis, mas que achava que seria ridicularizada porque eu precisava passar por todo um ritual para ser validada. Queria me livrar dessa performance; ou, pelo menos, performar algo que me agradasse. E isso tem muito a ver com a minha literatura. E com Lana Del Rey.
Como já falei no meu texto dissecando eu mesma, Lana Del Rey foi essencial na minha descoberta porque seu trabalho audiovisual conversou diretamente com a versão de mim que eu não considerava bonita. Uma garota vivendo em seu próprio mundo, por suas histórias e seus personagens, que não passava o fim de semana enchendo a cara cheia de amigos, que preferia ficar no quarto lendo um livro ou que colocava os fones de ouvido no último volume para mergulhar em outra realidade.
Quando eu me tornei uma lanafã eu já tinha 18 anos. Foi ouvindo o álbum Born to Die em looping que eu concluí a escrita do meu primeiro livro. Mais do que as histórias melancólicas de suas composições, era o seu jeito de cantar o agudo e o grave, os instrumentais dramáticos das músicas, a mistura urbana com o clássico, além do visual exagerado, romântico e vintage. Não havia ninguém como Lana Del Rey enquanto ela acontecia. Isso despertou algo que estava adormecido em mim.
Essa mulher só faz música triste, só faz música de dormir, eu ouvi algumas pessoas me falarem. Isso é música de mulher maluca, virou trend no twitter, junto com garotas com maquiagem de palhaço e e-girls. Eu discordava completamente, em especial quando capturava suas referências culturais e literárias dentro das músicas. Essa mulher é uma leitora, eu pensei, alguém que conhece o que eu conheço, sente coisas que eu sinto. Alguém que vê o mundo sob um prisma parecido e fantasia o mundo ideal por trás da vidraça da redoma que nos afasta da vida real.
E ela não tinha medo. Ridicularizada em sua primeira apresentação na TV, taxada como insana graças à manchete sensacionalista do The Guardian “Lana Del Rey declara que preferia estar morta” (ou quase essas palavras), caricaturada por cantar sobre relacionamentos fudidos e renascer a gíria daddy. Com uma webcam, perucas de nylon da 25 de março e uma colagem de vídeos aleatórios, Lana Del Rey mudou a cultura pop ao cantar Video Games daquele jeito romântico e melancólico, decadente, como se estivesse afundando em um coma alcóolico.
Lana não se importava se era chamada de medíocre, ridícula ou retrógrada. Ela continuava com seu tom de voz delicado, com sua doçura e, vez ou outra, xingava alguém na internet. Ela era comum, mas não era qualquer uma. No que ela fazia como trabalho artístico, havia tudo o que eu gostava de ler, ver e ouvir na arte; era a mais próxima do que me identificava emocionalmente. Eu amava Beyoncé, Rihanna, Gaga, mas Lana Del Rey me entendia. Ela já me conhecia. Ela não dizia o que eu precisava fazer. Ela dizia o que eu já fiz. Ouvi-la criava uma conexão direta com o meu eu, como se eu entrasse em transe, em uma meditação profunda.
Depois, muitas coisas aconteceram e, para esse texto não ficar mais longo, vou ser objetiva: me livrei dos relacionamentos corrosivos, me mudei de onde eu morava, comecei uma nova vida com novas perspectivas. Até que o bichinho da literatura, igual a uma traça, me fez um furinho no peito: ei, você precisa voltar a escrever! E eu voltei meio insegura, mas porque era necessário para o meu espírito. Era minha plenitude.
Mas eu voltei tentando ser parecida com outros perfis de escritoras no instagram. Fonte courier new, os efeitos de papel amassado e rasgado, cores vibrantes para chamar a atenção das pessoas e até reels com versos soltos que não atraíam ninguém. Eu estava repetindo todo o processo estético que já havia me sufocado na vida fora da internet. O que eu gostava? Tipografia contrastante, design minimalista, imagens e escala de cinza. Ah, mas vai ficar sem graça. ninguém vai ver. Mas para mim tem graça, para mim tem beleza. Porque é o que me faz amar fazer isso. Pode ficar uma porcaria, mas será a minha porcaria.
Descobri o quanto a estética é importante para mim e para minha identidade como escritora. Meu atrevimento e minha autenticidade foram despertos e eu reencontrei a mesma pessoa que havia decidido que queria ser escritora quando adulta. Aquela Bianca que tinha ideias extravagantes e dramáticas para histórias, que escrevia uma cena pensando nas cores, nos carros, nas roupas dos personagens e no jeito que eles se comportavam. Eu escrevo (e sempre escrevi) pensando nos visuais, meus diálogos só vão para o papel depois de eu recitá-los. E, apesar de todas as questões políticas que costumo abordar, meu principal combustível para escrever uma história é o prazer estético. A arte que é capaz de se encerrar em si mesma.
Isso não significa que eu nunca possa escrever de outra forma, com outras intenções, mas quando eu me volto para a minha essência e personalidade, para a autenticidade de quem eu sou, é sempre a estética que dá as mãos ao que eu escrevo.
“Para mim, uma obra de ficção só existe na medida em que me proporciona o que chamarei sem rodeios de prazer estético, isto é, a sensação de que de algum modo, em algum lugar, está conectada a outros estados da existência em que a arte […] é a norma.”
(Vladimir Nabokov, 1956)
A beleza da estética não está em seguir um padrão. Lolita e O retrato de Dorian Gray são livros cujos autores anunciaram que os escreveram pelo prazer estético, pelo sentido da arte em si mesma. Ambos os livros cumprem seu papel artístico, mas também político; intencionalmente ou não. Me vejo inspirada por eles também. A beleza da estética na literatura (e fora dela) é a autenticidade, a personalidade, a confiança e a coragem.
Muita gente vai criticar, vai apontar todos os defeitos porque a autenticidade e a personalidade não são perfeitas. Mas elas são únicas. Não sou a mulher mais linda do mundo, nem de longe, mas sou única. Alexa Demie não carrega nada de extravagante em sua imagem, o gap entre seus dentes da frente (que foi ajustado) constantemente é visto como um defeito nas pessoas. Mas a sua energia é única. Ela é magnética, sorridente e interessante. A potência de sua personalidade fez Maddy Perez (sua personagem em Euphoria) ser tão amada quanto é. Ao lado do padrão Sydney Sweeney, é ela quem rouba todos os olhares, é quem inspira.
Alexa é meu exemplo favorito pois ela tem uma série de características que estão próximas às minhas. Mas eu também amo a Anya Taylor-Joy e seu rosto tem detalhes muito peculiares: os lábios bem desenhados e os olhos grandes meio afastados poderiam ser o foco da atenção. No entanto, sua presença nos tapetes vermelhos exala uma aura classy que a torna impecável. O mesmo ocorre à Rosalía e Rihanna, cujas personalidades se sobressaem a todos os “defeitos” que poderiam haver em seus rostos. Essas mulheres são tão decididas sobre si mesmas, sobre seus trabalhos, sem se importar com as críticas por fazerem sua mistura ousada e original de estilo, que é impossível não ser seduzido por elas.
Os exemplos em que a personalidade se sobressai ao padrão, ao ideal, são muitos. Lana Del Rey, por si só, é um deles: falando sobre melancolia romântica, sobre sofrimento e relacionamentos fracassados trajada pela nostalgia, produzida sob uma orquestra soturna em um mundo onde a música pop era maximalista, livre, dançante e revolucionária. Lana precisou sustentar sua personalidade diante das críticas e das acusações de ser uma persona fabricada. Hoje, ela é simplesmente uma das maiores compositoras do século XXI.
No fim das contas, elas são lindas, sedutoras e arrebatadoras porque são autênticas, por terem mais personalidade do que seguir o manual da “beleza padrão”. Meus autores favoritos, aqueles que me inspiram a escrever, são conhecidos pela ousadia, pela capacidade de desafiar o comum. Machado falava com os leitores, Clarice navegava na metafísica do cotidiano, Bukowski era cru enquanto Dostoivéski não se acanhava em desafiar a moral. Para essas pessoas e suas obras não havia a preocupação em se padronizar, em ser belo por ser comum, em ser o que todos desejam. A beleza estava (e está) em serem interessantes. E, para elas, para mim e para a minha literatura, não há nada mais bonito do que ter personalidade.
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Esse ano eu tinha um objetivo: me sentir bonita. Comecei fazendo coisas superficiais como ir no dermatologista, pintar o cabelo, fazer as unhas, academia… Até que eu notei que isso ainda não me fazia me sentir bem. Ainda me sentia desinteressante, estranha, sem saber o meu lugar. Pensei em desistir de tudo isso, apesar de ser bem vaidosa. Passei a tentar focar mais no meu interior, tirando toda essa camada de amargura que adquiri com os anos, me esforçando para parar com as comparações e expressando mais a minha criatividade. Até o momento, está funcionando. Acho que passamos muito tempo nos olhando no espelho de forma superficial que esquecemos de observar nossas ações e comportamentos—nosso interior. Ainda está sendo um processo. Eu amei o seu texto, pois meio que descreve tudo isso que ando passando, sabe? Adorei 🫶🏼
Sendo interessante já é bonita😊